Wednesday, July 05, 2006

Um mau sonho

Se não se mexesse, se pensassem que estava a dormir, seria como se nada tivesse acontecido. Como das outras vezes. A mãe viria acordá-lo na manhã seguinte e depois de lavar-se e tomar o pequeno almoço que ela teria pronto, sairia para a escola sem quase falar com ela. Nos dias seguintes, e à medida que o tempo passasse, seria como se nada tivesse acontecido. Dali a mais tempo poderia mesmo pôr-se a pensar se não o teria sonhado, um pesadelo que lhe parecera real, como acontece com os maus sonhos enquanto estamos a dormir, mas que não o era.
As vozes altas pareciam-lhe mais longe depois de tapar a cabeça com a manta até que acabou por adormecer sem dar conta.
Mas naquela manhã a mãe não o veio acordar. Acordou sózinho numa quietude estranha. A luz entrava pelas persianas mal fechadas. Não sentia o cheiro de café e o silêncio pesava. Levantou-se, receoso mesmo do som da sua própria voz. Só por isso não chamou pela mãe. Atravessou a porta do quarto entreaberta, habituando-se à pouca luz na cozinha, pouco a pouco apercebendo-se que ali não estava sozinho. O pai estava sentado num banco com a cabeça entre os braços apoiados na mesa. Fez algum ruído ao esbarrar noutro banco e o pai virou-se para ele. Parecia que olhando para ele não o via. Mas devia estar a vê-lo porque depois falou alto: "o que é que eu fiz". A seguir voltou a esconder o rosto nos braços mas o seu corpo foi sacudido por estremecimentos. E percebeu que o pai estava a chorar. Não podia mais fazer de conta que nada tinha sucedido. Soube nesse momento que nunca mais ia ver a sua mãe. Foi quando começou a gritar por ela.