Monday, November 09, 2015

7/10 Diálogo

- Estás há muito tempo à espera?
Não estava. Gostava de esperar pela irmã mais velha. Subia a rua que a levava do ciclo até à escola preparatória para depois ter companhia no caminho até casa. Enquanto ali estava, mergulhava nos seus pensamentos e pelo canto do olho ia observando os alunos mais adultos daquela escola. Um deles era o Jonas, pouco mais velho que ela. Conheceram-se quando ela foi para o 1º ano do ciclo, estava ele no 2º ano, na aula conjunta de ginástica. Os rapazes andavam a correr em aquecimento, ela exagerara uma gripe para ficar a enregelar num canto. Já meio arrependida da sua mentira, tropeçara nos seus próprios pés e o Jonas que passava por ela, agarrou-a e não a deixou cair. Desde então, observava-o de longe, meio agradecida, meio envergonhada por não ter sabido na altura dizer-lhe obrigada. Ficou com pena quando passou o ano e ele mudou de escola.
 - Não.
Retorquiu-lhe, sem o olhar, deixando que o cabelo lhe caísse para a frente e meio lhe tapasse a cara.
- E agora, quem é te agarra quando finges cair? Brincou ele.
Lembrava-se dela. Que horror e ao mesmo tempo, que bom, porque afinal não era tão invisível como às vezes se sentia e sobretudo porque não o era para ele.
Afastou o cabelo da cara para o encarar:  “podias ser tu”.
Olharam-se os dois e ele reparou que ela tinha crescido, estava quase da sua altura, ainda magrinha e com uma floresta de cabelo. Naquele ano reconhecera-a e observara-a de longe, primeiro a interrogar-se sobre o que viria ali fazer, depois notara que vinha encontrar-se com a irmã e saíam as duas. Gostou que não viesse encontrar-se com um namorado.
- Podia ser eu. Respondeu-lhe.

E sorriram um para o outro.

6/10 Letra a

Era uma vez uma princesa.
Loura, bonita, encantadora.
Um belo dia resolveu sair de casa.
E foi à procura da vida lá fora.
Encontrou um príncipe que era belo como uma estátua.
Imóvel, calado, não quis nada com ela.
Seguiu em frente a nossa heroína, um pouco desanimada.
De seguida encontrou um sapo de cor esverdeada.
Lembrou-se do conto de fadas que lhe tinham contado em criança.
E lançou-se em perseguição do sapo de cor esverdeada.
Não foi fácil, mas conseguiu agarrá-lo com a sua mão delicada.
Chegou o seu belo rosto ao sapo e deu-lhe um beijo na cara.
Convém esclarecer que os sapos, sobretudo quando são encantados, têm cara.
No entanto, não aconteceu nada.
O sapo continuou um simples sapo de cor esverdeada.
Triste a princesa voltou para casa
E apercebeu-se que talvez não fosse uma princesa.
Mas por outro lado, isso deixava-a livre para poder ser tudo que quisesse ou nada.


5/10 Sabes que


Sabes que não quero e nunca irei esquecer-me de ti.
Quero guardar tudo, o bom e o mau, porque mesmo uma má memória, se é de algo que vivemos juntos, é importante e preciosa, e agora é só o que tenho de ti.
Estou a escrever-te porque não posso falar contigo e quero crer que de alguma forma poderias ler, como se estivesses atrás de mim a espreitar por cima do meu ombro.
Lembro-me do teu rosto, dos teus abraços, de algumas das palavras e expressões que usavas e eram só tuas. Quando penso nelas, quase consigo ouvir a tua voz.
Quando morreste, o mundo mudou de um momento para o outro. Pareceu-me que atravessava uma linha que me separava para sempre de todos aqueles que não sabem. 
Não sabem que há dores que não passam, nos envolvem e se tornam parte de nós.
Não sabem que apenas com o tempo as conseguimos fechar em alguma gaveta para que fiquem em segundo plano, e possamos continuar a agir como se estivéssemos vivos.
Mas a dor está lá, permanece, e a qualquer momento, pode-se abrir a gaveta.
Então também senti medo porque o meu mundo se desmoronava. Nada fazia sentido porque não devias nem podias ter morrido.
Depois senti raiva. Sabia o que tinha sucedido, mas não conseguia acreditar.
Aceitar foi apenas o acreditar.
Pouco a pouco, quando fui forçada a trocar os nossos antigos hábitos por outros em que tu não estás, deixei de estranhar não te ver, não poder telefonar-te, não estar contigo.
Mas sabes, enquanto eu for eu, não me esquecerei de ti.



4/10 Email


Caro Director de Recrutamento do Inferno Luci Fer,

O nosso Director do Centro de Atendimento ao Cliente (o São Pedro, caso não te recordes) de há uns meses para cá, tem vindo a reportar um aumento exponencial de queixas dos nossos clientes, mais de 90% dizem que mereciam o Céu e foram enganados.

Até aqui tudo bem, C’est la vie. Mas, este aumento significativo de queixas já levou o São Pedro a pedir mais dois arcanjos. Por outro lado, o orçamento para manter o Inferno bem quentinho está-me a estoirar o equilíbrio orçamental. Estamos com um défice de 3%. INSUPORTÁVEL!!!

Vamos lá trabalhar em equipa, e pára JÁ de martirizar os terráqueos. Caso não sigas as indicações do Board, terás no próximo ano um corte orçamental proporcional ao défice, e em igual proporção nos teus prémios de desempenho.


Melhores Cumprimentos
Pelo Presidente do Conselho de Administração

D.



(1ª tentativa
Caro Luci Fer

Como deverás saber, uma vez que nos conhecemos há tantos anos que pesam como dezenas de séculos, não gosto de rodear os problemas e sim ir directo ao que me preocupa.
Ora, os meus assessores chamaram-me a atenção, e pude também confirmá-lo pela consulta dos últimos gráficos, que a crescente actividade dos teus funcionários conduziu a um crescimento desmesurado dos teus domínios e diminuição exponencial dos meus.
Contudo, sabemos os dois que no passo seguinte, lutas contra o superpovoamento.
Venho assim solicitar que martirizes menos a população destinatária das nossas campanhas, advertindo-te que não o fazendo, irei elevar ainda mais os meus critérios de admissão. Desta forma poderás ter de enfrentar juntamente com a  falta de espaço, o problema do surgimento de falsos profetas que aparecem sempre nestas alturas de crise – sem que nada faça para os denunciar.
Proponho assim para a manutenção da sã convivência habitual, a construção de uma ponte de entendimento, em que aligeires a tua actividade e mantenhamos os níveis nas futuras admissões.
Cumprimentos

D.)

3/10 Discurso


Caros colegas, alunos, pais, família e amigos.
Obrigada por terem vindo hoje, mesmo que seja para confirmarem que é desta que não regresso mais à escola.
Olhando para trás, custa-me a crer que já passaram cinquenta anos desde que leccionei a minha primeira aula.
Desde então, pude acompanhar a formação de várias gerações e crer que apesar dos tempos serem difíceis, poderemos esperar tudo dos nossos filhos ou netos, no meu caso.
E por tudo, claro que me refiro a realizações positivas, mesmo entre aqueles que podem ter passado por reprovações e faltas disciplinares, mas que souberam aproveitar as oportunidades na escola.
Durante estes anos tive sempre a grata surpresa e felicidade de reencontrar os meus antigos alunos a exercerem as mais variadas profissões.
Lembro-me por exemplo do dia, em que encontrei o João A como carteirista, que me levou a carteira sem eu reparar, e o João B como policia que o apanhou.
Não pude deixar de reparar com o maior orgulho como os soube ensinar a correr.
Como sabem, apesar de leccionar educação física fui sempre adiando a reforma
Tal só sucede agora, não por não ter há muito o vigor da juventude e os meus olhos me pregarem partidas levando-me a trocar algumas caras e notas,
Ou ter tido também a má-sorte de passar por diversas fracturas em consequências de estranhas quedas – sei que as brincadeiras com as cascas de banana não me eram dirigidas,
Ou pelos constantes adiamentos legais da idade da reforma e redução do valor da pensão
Mas porque eu e a minha Maria ganhámos o euromilhões.
Vamos viajar pelo mundo e no regresso contribuir, sem dúvida, para o desenvolvimento do país, com a criação de novos empregos e investimento na carreira dos colegas e antigos alunos, aqui presentes.
Bem hajam por terem vindo.


2/10 Canção



O sonho comanda a vida
No sonho há a magia
Que nos faz crescer

Estrada fora, cabelos ao vento
Olhando para trás ela pode dizer
Que soube viver, soube viver

Pais ocupados, não a entendiam
Estava sozinha, não a queriam
Foi para a cidade para poder ser

Cantou à noite em bares vazios
Paixões fugazes, raros amigos,
Fama não chegou nunca a ter

Fez o que queria, viveu o sonho,
Olhando para trás ela pode dizer

Que soube viver, soube viver

1/10 Na Esplanada

Depois do almoço foi para a esplanada. Estava ainda calor, embora por vezes nuvens brancas tapassem o sol e sombreassem as mesas. Sentou-se virado para o mar. Soprava algum vento e achou que cheirava a maresia.
Mal se tinha sentado quando um pequeno cão saltou para o seu colo.
Era tão leve que mal o sentia, mas quando tentou que voltasse para o chão, rosnou-lhe. Ficou sem saber o que fazer. Mas quem seria o seu dono que tal enxovalho alheio permitia? Devia ser de uma mulher, porque tinha uma coleira cor-de-rosa.
Olhou à sua volta. Uma mulher gorda descia vagarosamente a rua na direcção do café. Devia ser dela. Só tinha de esperar que chegasse. Quando chamasse o cão, ele levantar-se-ia para a repreender com severidade: “Isto não se faz minha senhora!” Imaginou-se rodeado pela concordância dos demais frequentadores da esplanada, enquanto a mulher de olhos baixos e envergonhada, não saberia o que responder, até que ele, magnânimo, revelasse com um aceno que aquela vez a desculpava. Enquanto isto, a mulher entrou para um carro azul que parara na rua para a acolher.
Voltou a olhar em redor. Deveria ser então da jovem bonita de bikini vermelho, que lambuzada de gelado namorava o empregado. Quando ela se apercebesse do ocorrido, viria desculpar-se. Ele sorrir-lhe-ia, “não incomodou nada”, e talvez ela se sentasse na mesa ao seu lado e ficassem a conversar enquanto faziam festas ao cãozinho. Mas eis que a jovem vai embora, passando por eles, sem se deter.
Repara então que nenhum empregado veio trazer-lhe um café ou receber o seu pedido e que à sua volta ninguém o parece ver.
O cão, afinal sozinho no banco, vai ter com o narrador, e ele percebe que era apenas um personagem, à medida que se dissolve, na trecentésima palavra.