Monday, July 13, 2015

Amor sem desespero

Amor sem desespero

Ana não sabia demonstrar o que sentia, com abraços ou beijos. Saía aos pais. Pessoas sérias, trabalhadoras, a quem ninguém tinha nada a apontar. Saíam cedo de manhã para o trabalho. Deixavam a filha na escola. Regressavam no final do dia. Metiam-se em casa. A mãe cozinhava, enquanto o pai lia o jornal. Ela fazia os deveres da escola. Deitavam-se cedo. Domingo de manhã iam à missa. A mãe investia mais no almoço. O pai dormitava de tarde. Viam televisão e deitavam-se cedo, que o dia seguinte era de novo dia de trabalho. Ana foi até ao 9ºano, com boas notas. Começou a trabalhar ao lado da mãe nas limpezas, passou depois a substituí-la, ficando a mãe como queria em casa, entregue aos seus afazeres, finalmente com um pouco mais de tempo para si, agora que tinha a filha criada. Chegou aos vinte anos solteira, sem nunca ter tido um namorado.
Já ao Rui, com vinte e cinco anos, não lhe faltaram namoradas. Chegou a ter duas ao mesmo tempo e mais do que uma vez. Não era nada bonito o rapaz. Magro e desengonçado, quatro olhos na escola, com lentes garrafais que lhe deixavam os olhos pequenos. Foi logo dado como não apto para o serviço militar. Sem óculos não via nada, seria um perigo com uma arma na mão. Ficou a trabalhar na loja do pai e tinha jeito para atender os clientes, organizar os livros, tratar com os fornecedores. Era bem-falante e engraçado. Aproximava-se como amigo, puxava as meninas para dançar nos bailaricos da vila. Fazia-as rir. Mas o tempo que levava um fósforo a arder, desinteressava-se. Normalmente tão cedo que elas nem tinham tempo de se ligarem a ele de uma forma mais séria. Entusiasmavam-se, mas depois aceitavam que ele se afastasse. Afinal ele era assim. Gostava de todas, acabava por não ser de nenhuma.
Ora, estranhamente porque via tão mal que facilmente iria contra uma porta, reparou o Rui primeiro que a Ana era uma rapariga como as outras. Era calada e séria. Não se fazia ouvir e pelas roupas modestas que vestia, não se fazia ver. Usava o cabelo preso. Raramente levantava os olhos para ver fosse quem fosse, embora tivesse os olhos bonitos, castanhos, com pestanas invulgarmente compridas, como as publicitadas por marcas de rímel que só na televisão assim apareciam. Tentou o Rui meter conversa com ela, mais do que uma vez, e não conseguiu nada. Ela mal lhe respondia. Bom dia, boa tarde, tenho de ir que já é tarde. Tornou‑se um desafio para ele conseguir arrancar-lhe mais do uma frase, tentar que ela permanecesse mais alguns minutos na sua companhia. Começou a reparar que ela era bonita. Definiu uma estratégia que passava por cruzar-se com ela no início de cada tarde, quando ela retomava ao trabalho após almoçar em casa. Do boa tarde, perguntava-lhe se podia acompanhá-la parte do caminho, se ela nada respondia, interpretava-o como consentindo. Já sabia que era melhor não a interpelar, porque ela não respondia, só apressaria o passo e se despediria. Fazia por cativá-la com descrições simpáticas do que se passava em redor, bem atento a qualquer sinal de interesse para escolher o tema. Eram só alguns momentos porque cedo ela chegava à casa onde iria prestar serviço. Mas pouco a pouco ele ia conseguindo que durassem mais. Media o seu sucesso no andarem mais vagarosamente, em obter uma paragem, um olhar. Um dia conseguiu dela uma pergunta.
Ana passou a reparar no Rui, e a dar valor àqueles minutos. Ao Domingo não ia trabalhar e não se viam. Do melhor dia da semana tornou-se o pior, sem que ela percebesse bem porquê. Pela primeira vez desejou ser diferente, mais extrovertida, como se lembrava que algumas colegas na escola eram. Ser mais bonita, ter outras roupas. Não achava que alguém pudesse gostar dela, da forma que era, mas antes não pensava propriamente nisso, não se importava
Um belo dia, ele resolveu convidá-la a ser o seu par, na festa de sábado da vila. Apanhada de surpresa, Ana assustou-se. Disse-lhe que não, e voltou a apressar o passo, mal se despediu dele. Ao entrar na casa onde a esperavam, queria chorar, mas escondeu o que sentia. Queria ter dito, sim.
Rui não percebeu aquela regressão. Nunca antes tinha gasto tanto tempo a tentar conquistar uma rapariga e pelos vistos tinha sido tudo em vão. Já lhe tinha acontecido várias vezes apanhar com um não, mas não se tinha importado, conformava-se e ia pregar a outra freguesia. O orgulho levemente ferido recuperava com o sim que conseguia de uma amiga da primeira. Daquela vez, não queria convidar outra e também não percebia porque se sentia zangado. Decidiu que não ia perder mais tempo com a Ana, que não voltaria mais a esperá-la no início da tarde e enquanto o decidia, sem o compreender, sentia que iria sentir a falta de a ver e mais zangado tal o fazia.
E porque estava zangado ou porque via mal, meteu-se a atravessar a rua sem ver o carro que vinha mesmo quase à sua frente. Felizmente seguia devagar e atento o seu condutor. Travou e embateu-lhe só de leve, fazendo-o contudo cair. Com o barulho da travagem e porque eram muito raros os acidentes na pequena vila, juntaram-se todos os desocupados à sua volta.
Ana que na altura passava pela janela e mais tarde diria que o seu coração adivinhou, viu o que tinha sucedido. Largou tudo e veio a correr. Chegou tão depressa que ele ainda estava no chão e agarrou-se a ele sem o querer largar. O corpo dela pesou-lhe e fez com que fosse um pouco mais difícil levantar-se. Teve  que repetir-lhe várias vezes que estava bem. Mas a zanga tinha-lhe passado por completo e sentia-se mais feliz do que se lembrava de alguma vez se ter sentido. Quando já todos os demais se tinham afastado, perguntou-lhe de novo se queria ir com ele ao baile e ela pendurada no seu braço, respondeu-lhe logo que sim.

Amor cego

Amor cego


Ela era a menina bonita que preferia ficar em casa. 
No seu lar estavam a avó, a mãe, as quatro tias e cinco irmãs mais velhas, Inês, Elisa, Isabel, Gracinda e Helena. Todas com o primeiro nome Maria, ela também, Maria da Luz, a Luzinha.
O pai emigrara para a Suíça. Voltava no Natal e nas férias. Magro e baixinho, parecia um pouco perdido entre tantas mulheres, meio espantado em reencontrar as filhas, que nasciam e cresciam entre as suas visitas, todas nascidas em Maio, excepto ela, que nasceu em Setembro.
As irmãs eram namoradeiras e gostavam de sair, um pouco preocupadas com a ideia de ficarem para tias, como tinha acontecido com as irmãs da mãe. Não que estas se queixassem, mais do que tias, realizaram-se na maternidade com as sobrinhas. A mãe preferia a filha mais-velha, cada uma das tias preferia depois pela ordem as  suas irmãs. Para si, já não tinha sobrado uma tia, mas encontrava carinho em todas.
As irmãs foram assentando com o eleito dos namorados, em casamentos de Agosto.
O pai cada vez mais magro, gastava o subsídio de férias na festa. Levava sucessivamente as filhas de branco pela Igreja enfeitada de flores até ao nervoso futuro genro no fato de Domingo.
Até que chegou um dia que só sobrava ela.
As irmãs casadas, com novos lares em aldeias vizinhas, já com filhos, os seus sobrinhos, e ela a chegar aos vinte e dois, solteira.
No círculo de mulheres, avó, mãe, tias e irmãs, decidiram que ela também tinha de arranjar um marido, ter a sua casa e filhos.
Contudo, nem na sua aldeia, nem nas que ficavam em redor, restavam moços casadoiros.
A avó, mãe e tias não conseguiam recordar-se de um primo solteiro e bom rapaz. As irmãs também ninguém lembravam, entre antigos pretendentes ou familiares e amigos dos maridos. Parecia que uma sombra levara todos os homens sozinhos e deixara apenas casais muito ou pouco felizes.
Lembrou-se então uma das tias em que recorressem ao pai. Talvez tivesse um colega de trabalho, de preferência português, que quisesse constituir família. Por sorte, surgiu-lhes a grande ideia no Natal e aproveitaram a sua vinda para lhe comunicarem a sua nova missão. Tinha de encontrar marido para a última filha solteira. 
Não pareceu o pai muito entusiasmado com o projecto, nem se lembrou naquela altura de ninguém. 
Voltou para a Suíça e a partir dai, em cada carta ou telefonema lhe perguntavam se já tinha encontrado o interessado. 
Perto de Agosto, talvez preocupado com o cerco que o aguardava, encontrou finalmente um pretendente. 
O Pedro, filho do empreiteiro que o contratara, vinte e oito anos, passara por um desgosto com uma suíça que o deixou por outro. Bom rapaz, com o liceu completo e a assumir o negócio do pai. 
Levou-lhe o pai uma fotografia da Maria da Luz, a da comunhão solene, e tinha concordado com este, que a filha era bonita. Não trouxe depois o pai fotografia dele, mas começaram a trocar cartas.
Luzinha escrevia as suas, bem compenetrada da sua importância. Pedia conselho às irmãs, escrevia primeiro o rascunho, passava depois para o papel de carta, com a letra bem desenhada. Escrevia sobre a vida na aldeia, os afazeres na casa, as criancices dos sobrinhos.
As cartas dele eram mais raras, mas eram lindas. Ele escrevia sobre sentimentos como um poeta. Parecia-lhe que lia um livro, embora não ficasse a saber muito, aliás pensando bem, não ficava a saber nada em concreto, sobre ele. Mas, se lhe respondia, deveria ser porque gostava realmente dela, como declamava nos seus escritos. 
Começou a imaginá-lo. Deveria ser alto e moreno como o herói na gravura de um dos seus livros de romance e como acreditava que o seu nome sugeria. Sensível e culto (afinal tinha o liceu completo) como as suas cartas revelavam. 
Os meses foram passando e sem saber como ou quando, apaixonou-se pelo Pedro que imaginava e nunca tinha visto, nem sequer em fotografia.
 Já com vinte e três anos, a aproximar-se o Natal, decidiram mãe, avó e tias que o pai tinha de o trazer nesta visita. 
E que prova de amor da parte dele, passar o Natal longe da família para conhecer a futura noiva. Olívia até emagreceu com a ânsia que o tempo passasse para poder finalmente encontrar-se com o Pedro.
Pelo Natal e como de costume, o pai só podia vir uns dias, aproveitando o fim‑de-semana e o feriado.
Viria de carro com um amigo da sua idade de aldeia vizinha e o Pedro.
Ela, a mãe e as tias passaram o dia a arrumar a casa, a arranjar o quarto onde o Pedro ia ficar, sob a direcção atenta da avó.
Era já noitinha quando na aldeia sossegada, ladraram os cães a anunciar que chegavam.
Maria da Luz, não sabia se devia correr para a porta, como antes sempre fazia quando o pai chegava, ou aguardar na sala que entrassem. Decidiu ir para a porta quando já lhes ouvia as vozes. Atrás da avó, da mãe e das tias, viu primeiro o pai e ao lado deste, um rapaz alourado, gorducho e baixinho, em vez do Pedro. Só que...como compreendeu logo depois, era o Pedro.
Não queria mostrar a sua decepção, mas queria esconder-se no seu quarto. Abraçou o pai como de costume, cumprimentou o Pedro. Este foi logo cercado pelas mulheres da família. Não lhes deixaram, felizmente, espaço ou tempo para conversarem. 
Foram todos para a cozinha, onde a avó lhes trouxe de cear, pão, queijo e vinho. 
E pouco tempo depois, que lhe pareceu a ela uma eternidade, foram-se deitar. 
Durante a noite sonhou que o Pedro moreno se afogava. Acordou sobressaltada, ainda o sol não nascera e com sede. 
Levantou-se para ir buscar água, não quis acender nenhum candeeiro e levou uma vela. Mais do que em qualquer outro dia reparou nas estranhas sombras que a vela descobria nas paredes e móvel do corredor.
Só ao chegar à cozinha, percebeu que já lá estava alguém, sentado à mesa.
Era o Pedro, levantara-se com fome, a pensar no pão e queijo e talvez também no vinho, que no Inverno aquecia. 
Ele olhou para ela, apanhado com a boca cheia, engoliu, sorriu e disse-lhe baixinho, "estava com fome, Luzinha". E talvez por pensar que a ideia dela fosse a mesma, ofereceu-lhe do pão que partira e a fatia de queijo que cortara. 
Maria da Luz pensou que a voz deste Pedro era mais bonita que a voz do Pedro que imaginara. Parecia-lhe sobretudo, real. 
Sem fome, aceitou e comeu o pão e queijo. Conversaram sobre a viagem e sobre a aldeia. 
Quando finalmente se foi deitar, não sonhou mais com o Pedro moreno e dormiu com os anjos.
Nos três dias que se seguiram, entre avó, mãe e tias, conseguiram conversar mais. 
Ele confessou-lhe que tinha copiado as cartas de livros e ela não se importou. 
Continuarem a escrever-se, mas ele agora escrevia com as suas palavras, sobre a sua vida. Mesmo sem declamação poética de sentimentos, ela adorou estas cartas. Falavam também ao telefone sempre que podiam.
No Agosto do ano seguinte, na Igreja enfeitada de flores, foram eles os noivos felizes antes de partirem para a Suíça.
O que se aconteceu depois, daria para muitas histórias, mas nenhuma como a que ela viria a contar às sete filhas, sobre como começou a namorar com o pai delas, sem o ter visto primeiro, e como o seu amor, de moreno e alto, passou a louro baixinho.