Wednesday, October 16, 2013

Luzes de presença em jogo de sombras


Luzes de presença em jogo de sombras,
No silêncio meio quebrado pelos passos abafados de solas de borracha.
O som das campainhas substituído nos corredores pelas luzes vermelhas sobre a porta dos quartos.
Não se ouvem gritos.
Palavras, gemidos e medos estarão contidos nos quartos.
Durante o dia, além da luz, a agitação dos enfermeiros e auxiliares e das visitas.
Trazem remédios e refeições, vêm mudar a cama.
Chegam e partem as visitas.
Quando entram, respiram a preocupação com quem visitam,
Ao partir, retomam o contratempo das rotinas perturbadas,
 E levam também o desejo de sair com eles, dos que ficam.

Até que no dia da alta,
Após a saída,
Ainda que mais frágil, em convalescença,
Reduzidos os problemas do dia-a-dia, com o susto do internamento,
Se chega finalmente a casa,
Aí,
Em casa,
Reencontra-se a ordem do Universo
 E no olhar de quem se gosta, encontra-se o Natal.


Natal



Natal


Klaus tinha aproveitado a tarde para as suas últimas compras. Em cada final de Dezembro decidia que no próximo Natal ia planear e arranjar tudo com antecedência, para no ano seguinte chegar de novo a dia 24 com quase tudo por fazer. Felizmente e como de costume ia jantar a casa da irmã e do cunhado, com os pais e o irmão deste, os sobrinhos, e às vezes mais algum amigo deles. Lembrou-se que seria melhor levar também prendas extra como chocolates para prevenir estar lá algum amigo ou amiga deles. Tinha conseguido encontrar todos os presentes da sua lista – os brinquedos escolhidos pelos sobrinhos com a aprovação da mãe, uma caixa de ferramentas para o cunhado – no ano anterior revelara-lhe a intenção de começar a fazer alguns trabalhos em casa e apostava que ainda não teria sequer começado. Ia gostar da caixa, mesmo que depois não a utilizasse. Chocolates para a irmã e para os sogros dela, um cheque livro para o cunhado dela e mais chocolates embrulhados para outros possíveis convidados.
O centro comercial escolhido, o mais perto da sua casa, estava cheio. Tinha sido difícil conseguir um lugar para estacionar. Só o encontrara depois de algumas voltas e de ter seguido um casal carregado de prendas. Tinham correspondido às suas expectativas guardando cuidadosamente os seus embrulhos no porta bagagens, seguindo depois e deixando-lhe o lugar livre. Lá dentro, pareciam todos empenhados em entrar para o Guiness como o maior número de pessoas num centro comercial, enervados uns com os outros e com a falta de espaços livres, e a correr apressadamente de um lado para o outro. Tentou conservar o espírito de Natal e ser educado em todas as lojas a que foi, não obstante a pressa e falta de paciência com que deparou. Os funcionários das lojas, na sua maioria, não pareciam dotados de paciência ou talvez tivessem sido contagiados pela impaciência dos clientes apressados.
Já com todos os seus embrulhos – a lista tinha-o ajudado, assim como o recurso às prendas de chocolates – iniciou o caminho de volta para o carro. E foi então que sentiu que o observavam. Não sabia explicar essa sensação. Talvez tivesse visto alguém a olhar para si pelo canto do olho, meio inconsciente, até voltar a notar esse alguém. Olhou em redor e viu a alguns metros um homem de idade a olhar para si. Não havia dúvidas, o homem estava mesmo a olhá-lo, fixamente. Pensou que bastaria dar-lhe a perceber que o tinha detectado para que mudasse de alvo, mas isso não aconteceu. O homem continuou a olhar para ele e fez mais, começou a aproximar-se com pequenos passos. Era um homem de sessenta e tal ou mais anos, de cabelo e barba grisalhos, baixinho e com barriga. Vinha na sua direcção, sem deixar de o olhar, com passos curtos. Depois de o ter encarado, Klaus decidiu que não daria mais para fingir que não o via e seguir em direcção ao seu carro, por isso esperou por ele. Quando finalmente chegou ao pé de si, o homem parou, olhou para ele e disse-lhe: “Klaus está na hora de trocarmos de novo”. O homem levantou a sua mãozinha gorducha onde no dedo indicador brilhava num anel uma pedra vermelha e tudo pareceu parar naquele momento. À volta deles, as pessoas continuavam apressadas, mas ele e o homenzinho pareciam fechados num círculo frio e imóvel. Sentiu-se como que sugado para dentro do homem e de repente estava a olhar para si mesmo, mas sem ser com um espelho. Via-se, alto, quarentão e louro, está bem, já um bocadinho grisalho, o solteirão cuja própria irmã já tinha desistido de lhe arranjar uma esposa, que vivia bem sozinho, não fazia falta a ninguém e andava normalmente sempre bastante satisfeito consigo próprio. Viu‑se a respirar de alivio, ouviu a sua voz a dizer: “por fim, posso ser eu de novo”. Olhou para as mãos, para aquelas que agora apareciam como as suas mãos, mais pequenas e papudas, e no  dedo indicador, a pedra vermelha de um anel parecia ter gasto o seu brilho. O seu eu, olhou-o de alto para baixo e disse-lhe: “Agora tenho dez anos para viver com este corpo e tu Klaus tens de tratar do Natal”. Logo de seguida, o seu corpo virou-se e fugiu-lhe a correr. E Klaus lembrou-se de repente que tinha de arranjar prendas, muitas mais prendas porque era Natal.


Tuesday, October 15, 2013

Natal


Mariazinha não estava nada à espera daquilo. A dor de cabeça, a confusão. Sentiu‑se mais assustada com a reacção dos filhos. Fizeram-lhe perguntas a que respondeu, mas o que lhes disse não deveria ter sido a resposta certa porque ficaram ainda mais alarmados. Ainda no dia anterior tinha saído com a filha e as netas, e agora não se lembrava do que tinham comprado. Seriam prendas para as meninas? Mas que prendas? E de repente, já só se lembrava do nome da mais velha, da Paulinha, e não conseguia recordar o nome da mais pequenina.
Chamaram o INEM, levaram-na para o hospital. Melhorou um bocadinho. Tiraram-lhe sangue, fizeram-lhe exames e mais perguntas. Depois o Sr. Dr. explicou-lhe que tinha de ficar internada, só um dia ou dois, que tinha tido um AIT ou um AVC. Tinham-lhe dado antes um comprimido que lhe deu muito sono e a fez concordar com que o lhe diziam. Ficar ali, longe da sua casa e sem ter levado roupa, nem avisado ninguém.
De repente, o seu mundo ficou confinado ao quarto, um retângulo com quatro camas, mas apenas duas ocupadas, com ela, três. Felizmente o comprimido que lhe deu sono, ajudou-a a atravessar a noite, com os intervalos em que a vieram picar ou medir‑lhe a tensão e ouviu ao longe gritos abafados. As suas colegas recuperavam de cirurgias. Uma vomitou durante a noite, efeito da anestesia. Esta era uma jovem alta e forte, muito despachada. Era a segunda vez que era operada a um abcesso. Na outra, não tinha tido aquela recção à anestesia e estava pronta para ir embora. À outra companheira, mais da sua idade tinham-lhe tirado um peito. Esperava para saber se iniciava um  tratamento ou se havia metástases. Não gostou muito dos enfermeiros da noite. Poderia ser por estar meio a dormir, mas tinham-lhe parecido muito sisudos. Talvez também estivessem com sono. Já a Srª Enfermeira do dia mostrou-me uma joia de rapariga. Brincava com elas, dizia-lhes que precisava das camas livres, que tinham de comer tudo para irem embora, e que o soro era como uma feijoada.
A partir das dez começaram as visitas, vieram vê-la os filhos, à jovem veio vê-la a mãe, de tarde, e à senhora de mais idade o marido, também entradote. Preocupou-se com os filhos, que o Zé não estivesse a prejudicar o seu trabalho para estar ali com ela, e com quem tinha a Sofia deixado as suas netas, quem ia buscá-las à escola, agora que não podia ir a avó. Fizeram-lhe mais exames. Um médico diferente disse-lhe que teria tido um AIT ligeiro, mas que por precaução iam adiar a alta para o dia seguinte.
Foram-se embora as visitas. Voltou o silêncio pesado, assinalado pelos ruídos dos aparelhos no quarto. Custou-lhe mais esta segunda noite. Mais habituada ao espaço ou menos sedada, sentiu os gritos próximos. No dia seguinte, ainda pela manhã deram-lhe alta. Veio a Sofia com o marido buscá-la e ela a sentir-se meio trôpega, de certeza, só por causa dos quase dois dias na cama. Levaram-na de cadeira de rodas até à saída, depois agarrou-se ao braço da filha e o genro trouxe o carro para perto. 
Foram para casa.
Quando chegaram lembrou-se das prendas, do nome da Ritinha, que tinha de ajudar na cozinha, fazer o seu arroz doce e que era Natal.