Tuesday, November 14, 2006

Luz

Era muito tarde e tinha algum sono, mas resolvera não se ir deitar ainda. Pouco a pouco, os ruídos tinham diminuído enquanto a sua mulher e os seus filhos se deitavam. Depois das boas-noites ensonadas dos filhos e meio preocupada da mulher com o "vê lá não te deites muito tarde que amanhã tens sono!", da água a correr e risos enquanto os filhos escovavam os dentes, e das portas a fecharem-se, ficara um silêncio diferente. Eram agora outros barulhos que se faziam ouvir. Ruídos dos quais nem se apercebia durante o dia, como o do frigorífico, meio intermitente e o do ponteiro dos minutos no relógio da sala. O tempo agora era seu para fazer o que quisesse: trabalhar num processo que ainda não era urgente, ler o livro que começara há semanas para o largar quase de seguida, porque não o interessava; ou ficar simplesmente ali sentado, sem fazer nada, mas com a possibilidade de fazer o que decidisse, sem interrupções. De repente deixou de ordenar os seus pensamentos e veio-lhe à memória a Luz. Há tanto tempo que não pensava nela. Não fora o seu primeiro amor e enquanto namoraram nunca a levara muito a sério. Aborrecia-o às vezes porque não se arranjava como ele via as outras no liceu fazerem-no. Aliás, aproximara-se dela também porque estava aborrecido. Naquele ano tinha-se visto de repente sem namorada. Terminara com a anterior porque ia morar para outra região, demasiado longe para se poderem encontrar e já pouco ou nada apaixonados depois de um namoro de seis meses. De repente calhara olhar para a Luz. Pensara: já somos colegas há anos e nunca lhe conheci um namorado; e até que era bonita, com os seus longos cabelos escuros e os olhos claros. Era magra e branca, embora não se arranjasse muito. Perguntara-lhe se não gostava de ninguém e ela ficara perturbada, meio corada, sem conseguir fitá-lo nem responder-lhe. Aproximara-se então e dissera-lhe que ela era bonita e que já gostava dela há algum tempo. Aí ela já olhara para ele com um ar meio frágil e incrédulo que quase conseguia ver agora. Pobre Luz. Pelos vistos ela é que já gostava dele há muito tempo. Não tinha defesas, nem experiência e ele era muito jovem e irreflectido. Lembrava-se do pavor que sentira quando ela lhe contou que estava grávida. Olhara para ela e achara-a feia, com o nariz vermelho e os olhos de choro, mal arranjada. Fugira. Soubera depois que ela tinha feito um aborto e aquilo correu mal. Ficara estéril. Nunca mais se falaram.

Friday, November 03, 2006

Um dia

Doiam-lhe as costas Doiam-lhe demasiado as costas para pensar. Tinha apenas de continuar com o que estava a fazer e servir o jantar. A cara fechada sem deixar transparecer qualquer emoção. Não que ele fosse olhar para ela. Desde que as coisas aparecessem feitas seria como se não estivesse ali. Não olharia para ela nem a veria. Colocou a comida na mesa, serviu-o e sentou-se no seu lugar, de frente para ele, ao lado da porta que dava para a cozinha. Tudo como de costume, embora pouco comesse. Os únicos barulhos, além dos talheres a tocar nos pratos, eram os da respiração e mastigação, pesados naquele silêncio quente e húmido de Agosto. Esperou que ele se sentasse na poltrona de tecido rebentado como costumava fazer, a ver um qualquer programa de desporto como também sempre costumava fazer. Foi lavando a louça para se distrair, para não pensar no que tinha decidido fazer. Quando acabou e pôs o pano a secar, pensou é agora. Pegou na faca afiada ainda ontem e dirigiu-se em silêncio até à poltrona. Como para lhe facilitar a tarefa, adormecera com a cabeça caída para trás. Tão fácil pensou enquanto lhe passava a faca pela garganta. O sangue saltou, sujando a roupa, a poltrona, o chão. Ele abriu os olhos. Parecia espantado, depois zangado. Não disse nada. Fez um gesto como de que se ia levantar, mas já não chegou a fazê-lo. Novamente o olhar de espanto antes de se deixar cair na poltrona, agora com a cabeça para a frente. Depois de lavar o sangue que por algum tempo ainda pingou, sentou-se e ficou à espera. Ainda lhe doíam as costas. Esperou durante bastante tempo, em silêncio, sem ouvir mais nada, até que alguém da Polícia a levou.