Monday, November 09, 2015
-
Estás há muito tempo à espera?
Não
estava. Gostava de esperar pela irmã mais velha. Subia a rua que a levava do
ciclo até à escola preparatória para depois ter companhia no caminho até casa.
Enquanto ali estava, mergulhava nos seus pensamentos e pelo canto do olho ia observando
os alunos mais adultos daquela escola. Um deles era o Jonas, pouco mais velho
que ela. Conheceram-se quando ela foi para o 1º ano do ciclo, estava ele no 2º
ano, na aula conjunta de ginástica. Os rapazes andavam a correr em aquecimento,
ela exagerara uma gripe para ficar a enregelar num canto. Já meio arrependida
da sua mentira, tropeçara nos seus próprios pés e o Jonas que passava por ela,
agarrou-a e não a deixou cair. Desde então, observava-o de longe, meio
agradecida, meio envergonhada por não ter sabido na altura dizer-lhe obrigada.
Ficou com pena quando passou o ano e ele mudou de escola.
- Não.
Retorquiu-lhe,
sem o olhar, deixando que o cabelo lhe caísse para a frente e meio lhe tapasse
a cara.
-
E agora, quem é te agarra quando finges cair? Brincou ele.
Lembrava-se
dela. Que horror e ao mesmo tempo, que bom, porque afinal não era tão invisível
como às vezes se sentia e sobretudo porque não o era para ele.
Afastou
o cabelo da cara para o encarar: “podias
ser tu”.
Olharam-se
os dois e ele reparou que ela tinha crescido, estava quase da sua altura, ainda
magrinha e com uma floresta de cabelo. Naquele ano reconhecera-a e observara-a
de longe, primeiro a interrogar-se sobre o que viria ali fazer, depois notara
que vinha encontrar-se com a irmã e saíam as duas. Gostou que não viesse
encontrar-se com um namorado.
-
Podia ser eu. Respondeu-lhe.
E
sorriram um para o outro.
6/10 Letra a
Era uma vez uma princesa.
Loura, bonita, encantadora.
Um belo dia resolveu sair de casa.
E foi à procura da vida lá fora.
Encontrou um príncipe que era belo como uma estátua.
Imóvel, calado, não quis nada com ela.
Seguiu em frente a nossa heroína, um pouco desanimada.
De seguida encontrou um sapo de cor esverdeada.
Lembrou-se do conto de fadas que lhe tinham contado em
criança.
E lançou-se em perseguição do sapo de cor esverdeada.
Não foi fácil, mas conseguiu agarrá-lo com a sua mão
delicada.
Chegou o seu belo rosto ao sapo e deu-lhe um beijo na cara.
Convém esclarecer que os sapos, sobretudo quando são
encantados, têm cara.
No entanto, não aconteceu nada.
O sapo continuou um simples sapo de cor esverdeada.
Triste a princesa voltou para casa
E apercebeu-se que talvez não fosse uma princesa.
Mas por outro lado, isso deixava-a livre para poder ser tudo
que quisesse ou nada.
5/10 Sabes que
Sabes que não quero e nunca irei esquecer-me de ti.
Quero guardar tudo, o bom e o mau, porque mesmo uma
má memória, se é de algo que vivemos juntos, é importante e preciosa, e agora é
só o que tenho de ti.
Estou a escrever-te porque não posso falar contigo e
quero crer que de alguma forma poderias ler, como se estivesses atrás de mim a
espreitar por cima do meu ombro.
Lembro-me do teu rosto, dos teus abraços, de algumas
das palavras e expressões que usavas e eram só tuas. Quando penso nelas, quase
consigo ouvir a tua voz.
Quando morreste, o mundo mudou de um momento para o
outro. Pareceu-me que atravessava uma linha que me separava para sempre de
todos aqueles que não sabem.
Não sabem que há dores que não passam, nos envolvem
e se tornam parte de nós.
Não sabem que apenas com o tempo as conseguimos
fechar em alguma gaveta para que fiquem em segundo plano, e possamos continuar
a agir como se estivéssemos vivos.
Mas a dor está lá, permanece, e a qualquer momento,
pode-se abrir a gaveta.
Então também senti medo porque o meu mundo se
desmoronava. Nada fazia sentido porque não devias nem podias ter morrido.
Depois senti raiva. Sabia o que tinha sucedido, mas
não conseguia acreditar.
Aceitar foi apenas o acreditar.
Pouco a pouco, quando fui forçada a trocar os nossos
antigos hábitos por outros em que tu não estás, deixei de estranhar não te ver,
não poder telefonar-te, não estar contigo.
Mas sabes, enquanto eu for eu, não me esquecerei de
ti.
4/10 Email
Caro
Director de Recrutamento do Inferno Luci Fer,
O
nosso Director do Centro de Atendimento ao Cliente (o São Pedro, caso não te
recordes) de há uns meses para cá, tem vindo a reportar um aumento exponencial
de queixas dos nossos clientes, mais de 90% dizem que mereciam o Céu e foram
enganados.
Até
aqui tudo bem, C’est la vie. Mas, este aumento significativo de queixas já
levou o São Pedro a pedir mais dois arcanjos. Por outro lado, o orçamento para
manter o Inferno bem quentinho está-me a estoirar o equilíbrio orçamental.
Estamos com um défice de 3%. INSUPORTÁVEL!!!
Vamos
lá trabalhar em equipa, e pára JÁ de martirizar os terráqueos. Caso não sigas
as indicações do Board, terás no próximo ano um corte orçamental proporcional
ao défice, e em igual proporção nos teus prémios de desempenho.
Melhores
Cumprimentos
Pelo
Presidente do Conselho de Administração
D.
(1ª tentativa
(1ª tentativa
Caro Luci Fer
Como deverás saber, uma vez que nos conhecemos há tantos anos que pesam como dezenas de séculos, não gosto de rodear os problemas e sim ir directo ao que me preocupa.
Ora, os meus assessores chamaram-me a atenção, e pude também confirmá-lo pela consulta dos últimos gráficos, que a crescente actividade dos teus funcionários conduziu a um crescimento desmesurado dos teus domínios e diminuição exponencial dos meus.
Contudo, sabemos os dois que no passo seguinte, lutas contra o superpovoamento.
Venho assim solicitar que martirizes menos a população destinatária das nossas campanhas, advertindo-te que não o fazendo, irei elevar ainda mais os meus critérios de admissão. Desta forma poderás ter de enfrentar juntamente com a falta de espaço, o problema do surgimento de falsos profetas que aparecem sempre nestas alturas de crise – sem que nada faça para os denunciar.
Proponho assim para a manutenção da sã convivência habitual, a construção de uma ponte de entendimento, em que aligeires a tua actividade e mantenhamos os níveis nas futuras admissões.
Cumprimentos
D.)
3/10 Discurso
Caros colegas, alunos, pais, família e amigos.
Obrigada por terem vindo hoje, mesmo que seja para
confirmarem que é desta que não regresso mais à escola.
Olhando para trás, custa-me a crer que já passaram
cinquenta anos desde que leccionei a minha primeira aula.
Desde então, pude acompanhar a formação de várias
gerações e crer que apesar dos tempos serem difíceis, poderemos esperar tudo
dos nossos filhos ou netos, no meu caso.
E por tudo, claro que me refiro a realizações
positivas, mesmo entre aqueles que podem ter passado por reprovações e faltas
disciplinares, mas que souberam aproveitar as oportunidades na escola.
Durante estes anos tive sempre a grata surpresa e
felicidade de reencontrar os meus antigos alunos a exercerem as mais variadas
profissões.
Lembro-me por exemplo do dia, em que encontrei o
João A como carteirista, que me levou a carteira sem eu reparar, e o João B
como policia que o apanhou.
Não pude deixar de reparar com o maior orgulho como
os soube ensinar a correr.
Como sabem, apesar de leccionar educação física fui
sempre adiando a reforma
Tal só sucede agora, não por não ter há muito o
vigor da juventude e os meus olhos me pregarem partidas levando-me a trocar
algumas caras e notas,
Ou ter tido também a má-sorte de passar por diversas
fracturas em consequências de estranhas quedas – sei que as brincadeiras com as
cascas de banana não me eram dirigidas,
Ou pelos constantes adiamentos legais da idade da
reforma e redução do valor da pensão
Mas porque eu e a minha Maria ganhámos o euromilhões.
Vamos viajar pelo mundo e no regresso contribuir,
sem dúvida, para o desenvolvimento do país, com a criação de novos empregos e
investimento na carreira dos colegas e antigos alunos, aqui presentes.
Bem hajam por terem vindo.
2/10 Canção
O sonho
comanda a vida
No sonho
há a magia
Que nos
faz crescer
Estrada
fora, cabelos ao vento
Olhando
para trás ela pode dizer
Que soube
viver, soube viver
Pais
ocupados, não a entendiam
Estava
sozinha, não a queriam
Foi para a
cidade para poder ser
Cantou à
noite em bares vazios
Paixões
fugazes, raros amigos,
Fama não
chegou nunca a ter
Fez o que
queria, viveu o sonho,
Olhando
para trás ela pode dizer
Que soube
viver, soube viver
1/10 Na Esplanada
Depois
do almoço foi para a esplanada. Estava ainda calor, embora por vezes nuvens
brancas tapassem o sol e sombreassem as mesas. Sentou-se virado para o mar.
Soprava algum vento e achou que cheirava a maresia.
Mal
se tinha sentado quando um pequeno cão saltou para o seu colo.
Era
tão leve que mal o sentia, mas quando tentou que voltasse para o chão,
rosnou-lhe. Ficou sem saber o que fazer. Mas quem seria o seu dono que tal
enxovalho alheio permitia? Devia ser de uma mulher, porque tinha uma coleira
cor-de-rosa.
Olhou
à sua volta. Uma mulher gorda descia vagarosamente a rua na direcção do café.
Devia ser dela. Só tinha de esperar que chegasse. Quando chamasse o cão, ele
levantar-se-ia para a repreender com severidade: “Isto não se faz minha senhora!”
Imaginou-se rodeado pela concordância dos demais frequentadores da esplanada,
enquanto a mulher de olhos baixos e envergonhada, não saberia o que responder,
até que ele, magnânimo, revelasse com um aceno que aquela vez a desculpava. Enquanto
isto, a mulher entrou para um carro azul que parara na rua para a acolher.
Voltou
a olhar em redor. Deveria ser então da jovem bonita de bikini vermelho, que
lambuzada de gelado namorava o empregado. Quando ela se apercebesse do
ocorrido, viria desculpar-se. Ele sorrir-lhe-ia, “não incomodou nada”, e talvez
ela se sentasse na mesa ao seu lado e ficassem a conversar enquanto faziam
festas ao cãozinho. Mas eis que a jovem vai embora, passando por eles, sem se
deter.
Repara
então que nenhum empregado veio trazer-lhe um café ou receber o seu pedido e
que à sua volta ninguém o parece ver.
O
cão, afinal sozinho no banco, vai ter com o narrador, e ele percebe que era
apenas um personagem, à medida que se dissolve, na trecentésima palavra.
Monday, September 07, 2015
08 - A Fotografia
Lembrava-se
pouco da tia-avó Bárbara. Baptizaram-na com o seu nome e viu-a algumas vezes
quando era criança. Nessas visitas, encontrava uma velhinha meio alheada do que
se passava à sua volta, mas que às vezes a olhava com carinho e lhe oferecia
chocolates brancos.
Contaram-lhe
que tinha ficado afectada com a morte do noivo num acidente. Foi sabendo que cada
vez se isolava mais na casa de família até que morreu.
Ficou
surpreendida quando soube que no testamento lhe deixara tudo. Pensou que teria
sido por ter o seu nome que a elegeu como herdeira entre vários sobrinhos.
Esperou
pelas férias para fazer a viagem da capital até à vila e ir ver o casarão.
Cheio de pó, com as mobílias cobertas por lençóis, correspondia às suas
recordações, mas algumas salas pareceram-lhes mais pequenas e os móveis antigos
não escondiam as marcas do uso ao longo do tempo.
Tinha
de decidir se o iria vender e resolveu primeiro escolher o que poderia guardar
ou até oferecer aos primos para os apaziguar.
Não
encontrou nada de valor ou pessoal no rés-do-chão e 1º andar. Subiu até ao
sótão, pela primeira vez. Ao contrário do que antecipara era um espaço
agradável, com muita luz, um sofá perto de uma estante, num recanto que convidava
à leitura, e uma arca ao lado. Dentro desta encontrou uma velha caixa de cartão,
abriu-a, e descobriu cartas enlaçadas por uma fita vermelha, fotografias
antigas, ainda a preto e branco, conchas e flores secas. Olhou com atenção para
as fotografias, recordações de familiares e momentos que não tinha vivido, até
que uma lhe chamou a atenção. Nesta reconheceu a tia-avó, quando jovem, meio
abraçada a um homem que olhava sorridente para quem os fotograva. A tia estava
mais a olhar para ele, revelando o enleio e a paixão que sentia. Seria sem dúvida
o seu noivo. Fixou-se mais nele e surpreendeu-se por as suas feições lhe
lembrarem alguém familiar. Os olhos bondosos, o sorriso aberto, eram os do seu
pai.
Então
percebeu. No passado, seria muito difícil a uma mulher sozinha, devastada pelo
desgosto, tomar conta de uma criança. Ou porque não estava em si com a dor, ou
porque aqueles que sempre pensara serem seus avós o tinham querido, abdicara do
filho.
Percebeu
que a sua tia era na verdade sua avó e era essa a razão para ter o seu nome e
ser sua herdeira.
07 - A Lição de piano
Era
criança, quando o seu pai ganhou num jogo de cartas um piano velho. Eufórico
exigiu a entrega do prémio que chegou dias depois quando a alegria do pai tinha
começado a esmorecer, especialmente pelo confronto com a sua mãe que não estava
de todo contente com a nova aquisição. Teve de entrar pela janela por não caber
pela entrada estreita do prédio (felizmente moravam num rés-do-chão), e foi
instalado na sala. Arranharam as teclas, detectando as desafinadas, colocaram-lhe
naperons e retratos em cima, e foram-se esquecendo dele.
Um
belo dia, era já ele adulto e tinham os pais ido de férias para a aldeia,
calhou reparar com outros olhos no piano. Imaginou-se a tocar grandes músicas e
a ser o centro das atenções em concertos e festas. Decidiu: ia aprender a tocar
piano.
Foi
até ao Conservatório para se inteirar dos procedimentos. Estavam também de
férias, mas havia anúncios de aulas particulares e anotou alguns. Ligou para o
primeiro número que era de uma professora. Gostou da voz dela, soou-lhe musical,
e marcaram uma aula na casa dela.
Conhecia
a rua e chegou bem cedo. Gastou algum tempo no café da esquina até reunir toda
a coragem necessária para vencer a sua timidez, e lá foi tocar-lhe à porta. Ela
própria veio abrir e não correspondia bem à ideia que tinha feito. Em vez de
uma jovem, era uma mulher de trinta anos, muito pintada, com cabelo azul,
camisa laranja, saia vermelha e sandálias douradas, e lindíssima Apesar das
mãos bonitas, com dedos finos, tinha umas unhas compridas, pintadas de castanho,
que lhe lembraram garras.
Conduziu-o
a um quarto pequeno onde apenas cabiam o piano, dois bancos e uma pequena
estante com livros e partituras musicais. Inquiriu-o sobre os seus
conhecimentos que eram muito básicos – na iniciação musical apenas aprendera a
ler pautas e a tocar (mal) a flauta de bisel.
Resolveu
a professora começar a aula tocando uma música simples, mas o que ouviu foram
as suas unhas sobre as teclas como castanholas
Não
queria melindrar a professora, nem desistir das aulas.
Pensou
e percebeu o que tinha de fazer.
Teve
de procurar em várias lojas até conseguir encontrar meias de nylon finíssimas
que fez questão de oferecer-lhe e pedir-lhe que as usasse, antes da segunda
aula.
No
dia marcado, a professora aguardava-o com as suas roupas coloridas, as meias,
sem malhas, e as unhas cortadas.
06 - Na Recepção
Isto
está difícil e faz-se o que se pode para se conseguir um emprego, mas todos os
dias se sente culpado por ter declarado que sabia falar islandês. O seu pai,
turista ou marinheiro, esteve em Portugal o tempo suficiente para seduzir-lhe a
mãe e deixar-lhe o bebé na barriga. Aperfilhou-o, mas nunca houve qualquer
contacto, em pessoa ou por escrito. Há dois anos comunicaram-lhe a sua morte.
Concordou que doassem a roupa e recebeu pelo correio os seus únicos haveres, um
relógio velho e um livro em islandês, a bíblia, com o carimbo de um hotel.
Quando afirmou que além do inglês, sabia islandês, tendo um pai islandês, todos
acreditaram. Tanto mais que era alourado (saía nisso à mãe, sobre o pai também
aqui as versões da mãe se confundem, louro ou grisalho).
Ficou
com o emprego: recepcionista no Star Hotel, no turno da noite.
Naquela
semana a expectativa tinha sido grande pela chegada do grupo Steal Stone, a
mais famosa banda de rock do mundo, como foi amplamente noticiado.
Reservaram
todo o 6º andar com a prévia exigência que todos os quartos tivessem mobiliário
branco e garrafas de água Perrier - ele e dois colegas andaram a carregar sofás
e a pintar armários.
Tinham
chegado de tarde e não os viu. O concerto seria no dia seguinte e estariam a
recuperar do voo e da diferença horária.
Esperava
ter uma noite tranquila – já tinham sido avisados pelo gerente da importância
dos hóspedes e “nem pensar em pedirem autógrafos ou selfies!”.
No
entanto, pelas três da manhã tocou o telefone e era o líder, Roger Steal a
gritar algo que lhe soou como: ” I’ want a portuguese stripper singer”.
Apelando
para os seus conhecimentos de inglês e agradecendo a todos os santos, mais uma
vez, que a banda, e nenhum hóspede até à data falasse islandês, lembrou-se da
sua prima Gracinha que cantava num rancho. Tinha um pouco de buço, mas àquela
hora, talvez passasse. Não se recordava era do quereria dizer “stripper”.
Ligou
para a prima que acedeu a vir com dois elementos do rancho.
Quando
chegaram, a prima um pouco mais gorda, todos vestidos com roupas regionais, levou‑os
ao quarto principal.
Estava
muito barulho e não o deixaram entrar.
Nem
meia hora depois, passavam por ele a correr a prima e os elementos do grupo,
afogueados e meios despidos.
Ainda
hoje a prima não lhe fala.
05 - O Leilão
O leilão
Foi-se deitar com uma dor esquisita que lhe subia
pelo braço. Acordou a sentir-se estranho e saiu sem tomar o pequeno-almoço.
Poucos passos tinha dado quando encontrou o Luís. Já
não o via há anos e até tinha pensado se não lhe teria sucedido alguma coisa.
Ele veio ter consigo, com todo o à vontade, como se estivessem estado juntos no
dia anterior, e anunciou-lhe que estava atrasado para o leilão. Não se lembrava
de ter sido convidado, mas seguiu-o obedientemente por ruas estreitas que não
conhecia, até um edifício estreito e antigo. Subiram as escadas de degraus de
madeira algo inclinados e meio cobertos por uma tapeçaria antiga, em tons de
vermelho desbotado. Chegaram a um salão interior sem janelas, com nove ou dez
cadeiras, cinco já ocupadas por dois homens e três mulheres de idade, vestidos
de escuro. O Luís disse-lhe para se sentar e esperar, e foi o que fez.
Contudo, nem teve tempo para pensar ou observar o
que se passava ao seu redor porque por uma outra porta lateral entrou logo o
leiloeiro. Era magro e alto, e deu de imediato início aos lances.
Inadvertidamente levou a mão ao rosto para abafar um
espirro e apercebeu-se que sem querer tinha licitado uma obra.
Não sabia qual, mas tinha consciência de não ter o
valor astronómico para a pagar.
Procurou o Luís quase em pânico.
Queria perguntar-lhe o que fazer para retirar a sua
proposta. O seu vizinho do lado apercebeu-se e assumiu a licitação para pagar
na íntegra o valor. Quando lhe quis agradecer apercebeu-se que ele lhe era familiar.
Lembrava-lhe o seu pai, ou melhor, a si mesmo, só que mais velho.
O seu eu de mais idade virou-se então para ele e
disse‑lhe: “Rui, é a tua alma que está em jogo e pela forma como viveres a tua
vida é que poderás ou não ter o valor para não a perderes.”
Acordou em sobressalto no seu quarto, ainda com o
aperto no peito, rodeado por paramédicos chamados pela mulher.
Confirmou mais tarde que o Luís já tinha morrido há
cerca de dez anos, num acidente de viação.
Durante algum tempo pensou se teria tido alguma
experiência de pós-morte e se seria um aviso. Teve mais cuidado com a saúde e
com a forma como agia com os outros.
Depois voltou a agir como antes e não pensou mais
nisso.
04 - Estátua
Queria encontrar o amor
e procurava-o na perfeição. Não tinha consciência dos corações despedaçados que
ia deixando pelo caminho, nem se importava. O objecto do seu interesse cedo se
tornava um aborrecimento. Uma vez conquistado, descobria que afinal não correspondia
ao que tinha idealizado. Deitava-se com uma deusa, acordava com uma mulher, de
quem então só via os defeitos.
Há cerca de duas
semanas quando se deixara deslumbrar por uma conservadora, tinham marcado um
encontro naquele Museu. Enquanto esperava por ela, tinha-se deixado vaguear pelas
salas, até que num canto, meio escondida, a descobrira. Esculpida em mármore
rosa, quase da sua altura, a sua beleza deixara-o sem palavras. Tudo nela era
perfeição, as feições simétricas, a proporção no seu corpo. Em pé, a olhar para
baixo, parecia aguardar. Tão viva que quase esperaria ouvir a suave respiração,
o arfar do seu alvo peito, um pestanejar que a levasse a erguer o rosto e a vê-lo.
Nessa altura, fora surpreendido pela jovem com quem se ia encontrar. Dir-se-ia
que tinha ficado com ciúmes porque praticamente o arrastou dali. Disse-lhe que a
estátua tinha de ser reparada antes de poder ser exposta, o que a ele soou a
falso. Dormiram juntos só uma vez, naquela noite. De manhã, disse-lhe que não
queria mais vê-la, e teve prazer em dizê-lo, quando normalmente só se sentia
era indiferente e vazio por mais uma vez se ter enganado.
Dali em diante começou
a sua obsessão. Passou a ir ao Museu todos os dias procurá-la, nos intervalos
de trabalho e aos fins-de-semana. Houve dias em que não conseguiu descobri-la.
Reparou que a mudavam de sala e normalmente a deixavam em espaços com pouca luz
e salas secundárias.
Um dia, conseguiu encontrá-la
bem cedo e numa sala vazia. Finalmente apenas os dois. Aproximou-se com cuidado,
transpôs o círculo que a rodeava, levantou um braço em direcção ao seu belo
rosto e tocou-lhe. Sentiu frio, o gelo que dela vinha, e percebeu. Não iria
conseguir despertá-la. A perfeição da sua beleza esculpida e imortalizada no
mármore, era de pedra, tão indiferente a ele, como ele tinha sido até àquela
data, e afinal imperfeita porque sem vida. Qualquer das mulheres com que se deitara,
na imperfeição revelada pela luz da madrugada, a suplantava, apenas por estar
viva. A vida era ilusão e decepção, medo e raiva, e o amor era ser capaz de ver
a perfeição da imperfeição.
03 Morte no Lago dos Cisnes
Cerrou-se a cortina e irromperam
os aplausos.
Era a altura de virem agradecer,
e uma menina da companhia aguardava já preparada com o ramo de rosas para
ofertar à primeira bailarina.
Alexandre pensou primeiro que
Tatiana estaria a brincar porque não se mexia. Ficara imóvel depois do salto
para o lago, na realidade, para um colchão, longe do olhar do público.
Alexandre seguira-a no salto e ficara a escutar a música, quase conseguindo ver
os passos que se seguiam: a morte do mago e a libertação de cisnes das
restantes jovens enfeitiçadas, na iluminação rosa do amanhecer.
Apenas quando tudo terminou é que
olhou melhor para ela, viu que continuava na mesma posição ao invés de como de
costume se preparar para acolher o seu público, e receou que pudesse ter desmaiado.
Tocou-lhe e sentiu-a estranhamente molhada. Acenderam as luzes e notou ao mesmo
tempo o sangue na sua mão e no tule do vestido branco. À sua volta também os
demais repararam e rodearam-nos. Um pequeno círculo no peito indicava que tinha
sido baleada e já não parecia respirar. Não conseguiam localizar Rothbart, o agente
da secreta, porque entusiasmado com a maquilhadora Odile se tinha perdido com
ela num dos camarins.
Lá fora a ovação aumentava e o
Director teve de dirigiu-se ao palco para anunciar que Tatiana Lazla não se
estava a sentir bem e por isso não viria corresponder e despedir-se.
Chamaram uma ambulância e a
polícia. Os médicos constataram a sua morte. Os agentes policiais, chegaram ao
teatro pouco depois e verificaram que uma parte dos espectadores tinha já saído.
Encerraram as portas, mas era demasiado tarde, não conseguiram descobrir a
arma, nem nada de suspeito.
Para o mundo inteiro, Tatiana
Lazla tinha morrido, vítima do crime perfeito, presenciado por centenas de
testemunhas que a viram cair, mas acreditaram que fazia parte da coreografia.
O seu homicídio permaneceria para
sempre um mistério, e ficariam sem resposta as questões sobre quem a tinha
morto e a razão porque o tinha feito.
Para todos? Talvez não.
Como Alexandre viria a saber
muitos anos depois, Tatiana, amante do secretário do Ministro da Defesa,
Siegfried Odette, tinha estado a facultar informações à CIA até levantar suspeitas.
Com a missão e identidade comprometidas, apenas a simulação da sua morte a
poderia salvar e aos seus poucos familiares.
Não dançou mais em público, mas
viveu o resto da sua vida em liberdade.
02 - Um grande Amor
Filme:
Um grande amor
Última
cena: Despedida
Cenário:
O Hospital central, à noite. Lá fora chove, afastando os últimos transeuntes, que
em passos apressados se abrigam sob os edifícios ou correm para os carros,
sublinhando a ideia de vazio. Numa sala, perto dos Cuidados Intensivos, Helena
e o cunhado encontram-se com dois médicos. Helena sentada a um canto da mesa
parece meio alheada da conversa.
Num
flashback ou cena retrospectiva, assistimos a uma sua memória de um momento que
viveu com o marido. Os dois mais jovens, ainda só namorados, num dia de verão.
Ela deitada na relva, ele sentado, entusiasmava-se a expor-lhe as ideias que
tinha para um trabalho, e ela resolveu fingir que tinha adormecido. David
representou então o príncipe encantado para a acordar com um beijo e acabaram a
rir os dois.
Helena
desperta para o presente ao perceber que os médicos falam sobre o traumatismo
devido ao acidente, coma irreversível e doação de órgãos.
Levanta-se,
e diz: “quero uns momentos a sós com ele para me despedir”.
Um
dos médicos leva-a até ao quarto e sai, encostando a porta. Ali a luz é mais
ténue e centra-se no leito.
Deitado
com a cabeça ligada, o ritmo cardíaco monitorizado e a soro, ele parece dormir.
Helena
senta-se ao seu lado. As lágrimas descem pelo seu rosto vagarosamente e é com
uma voz suave que se dirige a ele: “foste o melhor dos amigos, o melhor
namorado e marido que poderia ter, ofereces-te sempre tudo e por isso nunca
antes te pedi nada, mas meu amor não te posso deixar ir, não quero viver num
mundo em que não estejas, não me deixes”. Helena inclina-se, fecha os olhos e
beija-o nos lábios demoradamente. Quando acaba o beijo, afasta-se só alguns
centímetros, abre os olhos e olha-o com esperança.
É
só o seu rosto que a Câmara mostra.
Da
esperança passa para a decepção e para o desespero.
Levanta-se
fora de si, em direcção à porta e é barrada pelo cunhado que entretanto também
viera para o quarto. Procura refúgio nele, mas este estranhamento não retribui
o abraço e interpela-a: “Olha!”.
Só
então a Câmara se centra na cama. O rosto de David permanece impassível.
A
Câmara desce pelos seus braços e foca-se na mão esquerda. David ergueu dois
dedos e não se trata de um movimento reflexo, mas intencional.
01 - O Quadro
Se fosse pintora e pensasse em pintar um quadro, tentaria
pintar a casa. A dos seus pesadelos, a que mesmo sem querer a assombra, sempre
que se esquece de não se permitir lembrar.
Era tão jovem então. Tinha terminado o liceu. Não pensava, como
algumas das amigas em ingressar na universidade e tinha o verão à sua frente.
Como nos outros anos, iam passá-lo à aldeia, na casa dos avós paternos. Depois,
pensaria em arranjar um emprego, talvez como modelo ou hospedeira porque lhe
diziam que era bonita e era também o que via na atenção dos homens e lhe dizia
o espelho.
Acordavam tarde, iam para a praia no rio, levando sandes.
Regressavam para se arranjarem e voltarem a sair, para festas de garagem.
Reencontrou o Pedro, continuando sem gostar dele por o
achar convencido, mas gostou que ele a escolhesse. Um pouco mais velho, com
carro, combinou ir buscá-la a casa para irem a uma festa longe.
No regresso, em noite de trovoada de verão, o carro avariou.
Estavam perto da casa dos tios dele, meio abandonada desde
que há anos o primo desaparecera.
O Pedro desactivou o alarme e entraram. Levou-a para a sala,
mas não acendeu as luzes, apenas uma pequena de presença que incidia sobre um
quadro em destaque no meio da sala. Ele disse-lhe para olhar para a tela. “Tem
um segredo, apenas alguns o conseguem ver, não aparece em fotografias e ninguém
descobriu ainda como foi feito, que efeito de luz faz com alguns vejam e outros
não, mas não te posso dizer o que é porque se o fizer, já não o conseguirás
ver. Olha bem para ele e vê em que grupo estás enquanto vou buscar algo para
bebermos.
Olhou com mais atenção Era uma pintura de uma casa, daquela
casa em noite de tempestade. Dois raios atravessavam o quadro e caíam sobre a
casa. Lá fora um raio iluminou a noite. Ela estava a olhar para a casa, para as
janelas escuras e assustou-se. Numa janela do segundo andar pareceu-lhe ver um
rosto, um homem que lhe disse "foge".
E ela fugiu.
Começaram então os pesadelos.
Até que uma noite voltou à casa. Entrou
por uma janela aberta e dirigiu-se à sala. Levara consigo uma faca e
estraçalhou o quadro.
Diagnosticaram-lhe um ataque‑de‑nervos e
foi internada.
Soube depois que o primo do Pedro,
chorado como morto pelos pais, tinha aparecido.
Monday, July 13, 2015
Amor sem desespero
Amor sem desespero
Ana não sabia demonstrar o que sentia, com abraços ou beijos. Saía aos pais. Pessoas sérias, trabalhadoras, a quem ninguém tinha nada a apontar. Saíam cedo de manhã para o trabalho. Deixavam a filha na escola. Regressavam no final do dia. Metiam-se em casa. A mãe cozinhava, enquanto o pai lia o jornal. Ela fazia os deveres da escola. Deitavam-se cedo. Domingo de manhã iam à missa. A mãe investia mais no almoço. O pai dormitava de tarde. Viam televisão e deitavam-se cedo, que o dia seguinte era de novo dia de trabalho. Ana foi até ao 9ºano, com boas notas. Começou a trabalhar ao lado da mãe nas limpezas, passou depois a substituí-la, ficando a mãe como queria em casa, entregue aos seus afazeres, finalmente com um pouco mais de tempo para si, agora que tinha a filha criada. Chegou aos vinte anos solteira, sem nunca ter tido um namorado.
Já ao Rui, com vinte e cinco anos, não lhe faltaram namoradas. Chegou a ter duas ao mesmo tempo e mais do que uma vez. Não era nada bonito o rapaz. Magro e desengonçado, quatro olhos na escola, com lentes garrafais que lhe deixavam os olhos pequenos. Foi logo dado como não apto para o serviço militar. Sem óculos não via nada, seria um perigo com uma arma na mão. Ficou a trabalhar na loja do pai e tinha jeito para atender os clientes, organizar os livros, tratar com os fornecedores. Era bem-falante e engraçado. Aproximava-se como amigo, puxava as meninas para dançar nos bailaricos da vila. Fazia-as rir. Mas o tempo que levava um fósforo a arder, desinteressava-se. Normalmente tão cedo que elas nem tinham tempo de se ligarem a ele de uma forma mais séria. Entusiasmavam-se, mas depois aceitavam que ele se afastasse. Afinal ele era assim. Gostava de todas, acabava por não ser de nenhuma.
Ora, estranhamente porque via tão mal que facilmente iria contra uma porta, reparou o Rui primeiro que a Ana era uma rapariga como as outras. Era calada e séria. Não se fazia ouvir e pelas roupas modestas que vestia, não se fazia ver. Usava o cabelo preso. Raramente levantava os olhos para ver fosse quem fosse, embora tivesse os olhos bonitos, castanhos, com pestanas invulgarmente compridas, como as publicitadas por marcas de rímel que só na televisão assim apareciam. Tentou o Rui meter conversa com ela, mais do que uma vez, e não conseguiu nada. Ela mal lhe respondia. Bom dia, boa tarde, tenho de ir que já é tarde. Tornou‑se um desafio para ele conseguir arrancar-lhe mais do uma frase, tentar que ela permanecesse mais alguns minutos na sua companhia. Começou a reparar que ela era bonita. Definiu uma estratégia que passava por cruzar-se com ela no início de cada tarde, quando ela retomava ao trabalho após almoçar em casa. Do boa tarde, perguntava-lhe se podia acompanhá-la parte do caminho, se ela nada respondia, interpretava-o como consentindo. Já sabia que era melhor não a interpelar, porque ela não respondia, só apressaria o passo e se despediria. Fazia por cativá-la com descrições simpáticas do que se passava em redor, bem atento a qualquer sinal de interesse para escolher o tema. Eram só alguns momentos porque cedo ela chegava à casa onde iria prestar serviço. Mas pouco a pouco ele ia conseguindo que durassem mais. Media o seu sucesso no andarem mais vagarosamente, em obter uma paragem, um olhar. Um dia conseguiu dela uma pergunta.
Ana passou a reparar no Rui, e a dar valor àqueles minutos. Ao Domingo não ia trabalhar e não se viam. Do melhor dia da semana tornou-se o pior, sem que ela percebesse bem porquê. Pela primeira vez desejou ser diferente, mais extrovertida, como se lembrava que algumas colegas na escola eram. Ser mais bonita, ter outras roupas. Não achava que alguém pudesse gostar dela, da forma que era, mas antes não pensava propriamente nisso, não se importava
Um belo dia, ele resolveu convidá-la a ser o seu par, na festa de sábado da vila. Apanhada de surpresa, Ana assustou-se. Disse-lhe que não, e voltou a apressar o passo, mal se despediu dele. Ao entrar na casa onde a esperavam, queria chorar, mas escondeu o que sentia. Queria ter dito, sim.
Rui não percebeu aquela regressão. Nunca antes tinha gasto tanto tempo a tentar conquistar uma rapariga e pelos vistos tinha sido tudo em vão. Já lhe tinha acontecido várias vezes apanhar com um não, mas não se tinha importado, conformava-se e ia pregar a outra freguesia. O orgulho levemente ferido recuperava com o sim que conseguia de uma amiga da primeira. Daquela vez, não queria convidar outra e também não percebia porque se sentia zangado. Decidiu que não ia perder mais tempo com a Ana, que não voltaria mais a esperá-la no início da tarde e enquanto o decidia, sem o compreender, sentia que iria sentir a falta de a ver e mais zangado tal o fazia.
E porque estava zangado ou porque via mal, meteu-se a atravessar a rua sem ver o carro que vinha mesmo quase à sua frente. Felizmente seguia devagar e atento o seu condutor. Travou e embateu-lhe só de leve, fazendo-o contudo cair. Com o barulho da travagem e porque eram muito raros os acidentes na pequena vila, juntaram-se todos os desocupados à sua volta.
Ana que na altura passava pela janela e mais tarde diria que o seu coração adivinhou, viu o que tinha sucedido. Largou tudo e veio a correr. Chegou tão depressa que ele ainda estava no chão e agarrou-se a ele sem o querer largar. O corpo dela pesou-lhe e fez com que fosse um pouco mais difícil levantar-se. Teve que repetir-lhe várias vezes que estava bem. Mas a zanga tinha-lhe passado por completo e sentia-se mais feliz do que se lembrava de alguma vez se ter sentido. Quando já todos os demais se tinham afastado, perguntou-lhe de novo se queria ir com ele ao baile e ela pendurada no seu braço, respondeu-lhe logo que sim.
Amor cego
Amor cego
Ela era a
menina bonita que preferia ficar em casa.
No seu lar
estavam a avó, a mãe, as quatro tias e cinco irmãs mais velhas, Inês, Elisa,
Isabel, Gracinda e Helena. Todas com o primeiro nome Maria, ela também, Maria
da Luz, a Luzinha.
O pai
emigrara para a Suíça. Voltava no Natal e nas férias. Magro e baixinho, parecia
um pouco perdido entre tantas mulheres, meio espantado em reencontrar as
filhas, que nasciam e cresciam entre as suas visitas, todas nascidas em Maio,
excepto ela, que nasceu em Setembro.
As irmãs
eram namoradeiras e gostavam de sair, um pouco preocupadas com a ideia de
ficarem para tias, como tinha acontecido com as irmãs da mãe. Não que estas se
queixassem, mais do que tias, realizaram-se na maternidade com as sobrinhas. A
mãe preferia a filha mais-velha, cada uma das tias preferia depois pela ordem
as suas irmãs. Para si, já não tinha sobrado uma tia, mas encontrava
carinho em todas.
As irmãs
foram assentando com o eleito dos namorados, em casamentos de Agosto.
O pai cada
vez mais magro, gastava o subsídio de férias na festa. Levava sucessivamente as
filhas de branco pela Igreja enfeitada de flores até ao nervoso futuro genro no
fato de Domingo.
Até que
chegou um dia que só sobrava ela.
As irmãs
casadas, com novos lares em aldeias vizinhas, já com filhos, os seus sobrinhos,
e ela a chegar aos vinte e dois, solteira.
No círculo
de mulheres, avó, mãe, tias e irmãs, decidiram que ela também tinha de arranjar
um marido, ter a sua casa e filhos.
Contudo, nem
na sua aldeia, nem nas que ficavam em redor, restavam moços casadoiros.
A avó, mãe e
tias não conseguiam recordar-se de um primo solteiro e bom rapaz. As irmãs
também ninguém lembravam, entre antigos pretendentes ou familiares e amigos dos
maridos. Parecia que uma sombra levara todos os homens sozinhos e deixara
apenas casais muito ou pouco felizes.
Lembrou-se
então uma das tias em que recorressem ao pai. Talvez tivesse um colega de
trabalho, de preferência português, que quisesse constituir família. Por sorte,
surgiu-lhes a grande ideia no Natal e aproveitaram a sua vinda para lhe
comunicarem a sua nova missão. Tinha de encontrar marido para a última filha
solteira.
Não pareceu
o pai muito entusiasmado com o projecto, nem se lembrou naquela altura de
ninguém.
Voltou para
a Suíça e a partir dai, em cada carta ou telefonema lhe perguntavam se já tinha
encontrado o interessado.
Perto de
Agosto, talvez preocupado com o cerco que o aguardava, encontrou finalmente um
pretendente.
O Pedro,
filho do empreiteiro que o contratara, vinte e oito anos, passara por um
desgosto com uma suíça que o deixou por outro. Bom rapaz, com o liceu completo
e a assumir o negócio do pai.
Levou-lhe o
pai uma fotografia da Maria da Luz, a da comunhão solene, e tinha concordado
com este, que a filha era bonita. Não trouxe depois o pai fotografia dele, mas
começaram a trocar cartas.
Luzinha
escrevia as suas, bem compenetrada da sua importância. Pedia conselho às irmãs,
escrevia primeiro o rascunho, passava depois para o papel de carta, com a letra
bem desenhada. Escrevia sobre a vida na aldeia, os afazeres na casa, as
criancices dos sobrinhos.
As cartas
dele eram mais raras, mas eram lindas. Ele escrevia sobre sentimentos como um
poeta. Parecia-lhe que lia um livro, embora não ficasse a saber muito, aliás pensando
bem, não ficava a saber nada em concreto, sobre ele. Mas, se lhe respondia,
deveria ser porque gostava realmente dela, como declamava nos seus
escritos.
Começou a
imaginá-lo. Deveria ser alto e moreno como o herói na gravura de um dos seus livros
de romance e como acreditava que o seu nome sugeria. Sensível e culto (afinal
tinha o liceu completo) como as suas cartas revelavam.
Os meses
foram passando e sem saber como ou quando, apaixonou-se pelo Pedro que
imaginava e nunca tinha visto, nem sequer em fotografia.
Já com vinte e três anos, a aproximar-se o
Natal, decidiram mãe, avó e tias que o pai tinha de o trazer nesta
visita.
E que prova
de amor da parte dele, passar o Natal longe da família para conhecer a futura
noiva. Olívia até emagreceu com a ânsia que o tempo passasse para poder
finalmente encontrar-se com o Pedro.
Pelo Natal e
como de costume, o pai só podia vir uns dias, aproveitando o fim‑de-semana e o
feriado.
Viria de
carro com um amigo da sua idade de aldeia vizinha e o Pedro.
Ela, a mãe e
as tias passaram o dia a arrumar a casa, a arranjar o quarto onde o Pedro ia
ficar, sob a direcção atenta da avó.
Era já
noitinha quando na aldeia sossegada, ladraram os cães a anunciar que chegavam.
Maria da Luz,
não sabia se devia correr para a porta, como antes sempre fazia quando o pai
chegava, ou aguardar na sala que entrassem. Decidiu ir para a porta quando já
lhes ouvia as vozes. Atrás da avó, da mãe e das tias, viu primeiro o pai e ao
lado deste, um rapaz alourado, gorducho e baixinho, em vez do Pedro. Só que...como
compreendeu logo depois, era o Pedro.
Não queria
mostrar a sua decepção, mas queria esconder-se no seu quarto. Abraçou o pai
como de costume, cumprimentou o Pedro. Este foi logo cercado pelas mulheres da
família. Não lhes deixaram, felizmente, espaço ou tempo para conversarem.
Foram todos
para a cozinha, onde a avó lhes trouxe de cear, pão, queijo e vinho.
E pouco
tempo depois, que lhe pareceu a ela uma eternidade, foram-se deitar.
Durante a
noite sonhou que o Pedro moreno se afogava. Acordou sobressaltada, ainda o sol
não nascera e com sede.
Levantou-se
para ir buscar água, não quis acender nenhum candeeiro e levou uma vela. Mais
do que em qualquer outro dia reparou nas estranhas sombras que a vela descobria
nas paredes e móvel do corredor.
Só ao chegar
à cozinha, percebeu que já lá estava alguém, sentado à mesa.
Era o Pedro,
levantara-se com fome, a pensar no pão e queijo e talvez também no vinho, que
no Inverno aquecia.
Ele olhou
para ela, apanhado com a boca cheia, engoliu, sorriu e disse-lhe baixinho,
"estava com fome, Luzinha". E talvez por pensar que a ideia dela
fosse a mesma, ofereceu-lhe do pão que partira e a fatia de queijo que
cortara.
Maria da Luz
pensou que a voz deste Pedro era mais bonita que a voz do Pedro que imaginara.
Parecia-lhe sobretudo, real.
Sem fome,
aceitou e comeu o pão e queijo. Conversaram sobre a viagem e sobre a
aldeia.
Quando
finalmente se foi deitar, não sonhou mais com o Pedro moreno e dormiu com os
anjos.
Nos três
dias que se seguiram, entre avó, mãe e tias, conseguiram conversar mais.
Ele
confessou-lhe que tinha copiado as cartas de livros e ela não se
importou.
Continuarem
a escrever-se, mas ele agora escrevia com as suas palavras, sobre a sua vida.
Mesmo sem declamação poética de sentimentos, ela adorou estas cartas. Falavam
também ao telefone sempre que podiam.
No Agosto do ano
seguinte, na Igreja enfeitada de flores, foram eles os noivos felizes antes de
partirem para a Suíça.
O que se aconteceu
depois, daria para muitas histórias, mas nenhuma como a que ela viria a contar
às sete filhas, sobre como começou a namorar com o pai delas, sem o ter visto
primeiro, e como o seu amor, de moreno e alto, passou a louro baixinho.